Resumo das conferências

RESUMOS DAS CONFERÊNCIAS

MESA 1

Sobre algumas fontes do livro de M. M. Bakhtin sobre Rabelais/

О некоторых источниках книги М.М. Бахтина о Рабле

Svetlana Dubróvskaia/ Светлана Дубровская (Centro M. M. Bakhtin da Universidade Estatal da Mordóvia N. P Ogarióv, Saránsk, Rússia/Центр М.М. Бахтина Мордовского государственного университета им. Н.П. Огарёва, Саранск, Россия)

A edição das obras reunidas de M. M. Bakhtin se tornou o ponto de partida de uma nova etapa do desenvolvimento dos estudos bakhtinianos no mundo, enquanto um ramo específico de disciplinas interdisciplinares. Nas obras reunidas, a herança do pensador foi, pela primeira vez, sistematizada sob a perspectiva de uma textologia profissional acompanhada por comentários científicos qualificados. A fonte mais importante da nova edição sobre o caráter do trabalho de Bakhtin nas diversas etapas de sua atividade científica passou a ser o estudo dos livros, das brochuras, dos periódicos, preservados em sua biblioteca pessoal, na Biblioteca Científica M. M. Bakhtin da Universidade Estatal da Mordóvia, em outros repositórios de livros e em bibliotecas de particulares. Trata-se de edições consultadas por M. M. Bakhtin durante a preparação de suas pesquisas, o que pode ser verificado nas suas anotações às margens dessas publicações, bem como (em alguns casos) nos formulários de bibliotecas com sua assinatura. As anotações de Bakhtin (em sua maioria sublinhados) nas páginas de livros e de revistas foram feitas a lápis. A variação da quantidade de sublinhados (de um a doze) fornece bases para que o leitor e o pesquisador de Bakhtin possa avaliar a importância da passagem destacada. Nos últimos anos, o estudo das anotações bakhtinianas adquiriram uma importântia especial, uma vez que permite não só fixar um conjunto das fontes reais das ideias e trabalhos de Bakhtin, mas também, em parte, reconstruir o processo de trabalho do cientista sobre temas ou outras edições, visualizar e representar o grau de atenção e o caráter da compreensão de um fragmento específico, ou seja, olhar para o laboratório do pensador. O complexo trabalho de Bakhtin com as fontes (leitura com lápis, anotações e citações ou menções em seu texto) pode ser reconstituído hoje de um modo determinado: uma quantidade expressiva de anotações preservadas no arquivo não tem uma fonte original (ou seja, o livro com as notas de Bakhtin), ou seja, na maioria das edições usadas por de Bakhtin não é possível encontrar notas ou anotações. Têm um grande valor aquelas edições que permitem restabelecer toda a consistência do trabalho bakhtiniano com elas. Podem servir como exemplos de diálogos confirmados o trabalho de Bakhtin com os cinco tomos das obras reunidas de A. Bergson (1914), com a monografia de O. M. Freidenberg (1936), com as coletâneas “O realismo burguês inicial”(1936), “A. I. Guértsen. 1812-1870” (1946), com o primeiro tomo da “História da literatura francesa” (1947). Hoje os exemplares dessas edições com anotações a lápis de Bakhtin estão armazenados no arquivo pessoal do pensador (em Moscou) e no fundo memorial do Centro de M. M. Bakhtin (Saránsk). A leitura desses trabalhos se refletiu, em maior ou menor grau, no trabalho de Bakhtin com o texto do livro/tese/monografia sobre Rabelais. No contexto da problemática contemporânea a Bakhtin do fim dos anos 1930 e dos anos 1960, o objetivo de nossa conferência  é apresentar a pesquisa das anotações bakhtinianas nas páginas da supracitadas edições, identificando e apresentando os exemplos mais ilustrativos de uma “leitura dialogada”.

Издание собрания сочинений М.М. Бахтина [1] стало той отправной точкой, с которой начинается новый этап в развитии международного бахтиноведения, как специальной отрасли междисциплинарных исследований. В собрании сочинений наследие мыслителя впервые было представлено в систематизированном виде с профессиональным текстологическим сопровождением и добротным научным комментарием. Важнейшим источником нового знания о характере работы Бахтина на разных этапах его научной деятельности становится изучение книг, брошюр, периодики, сохранившихся в его личной библиотеке, в Научной библиотеке им. М.М. Бахтина Мордовского государственного университета, в других книгохранилищах и библиотеках отдельных лиц. Речь идет об изданиях, с которыми М.М. Бахтин работал во время подготовки своих исследований, что верифицировано имеющимися в этих изданиях маргиналиями ученого, а также (в отдельных случаях) библиотечными формулярами с его подписью. Маргиналии Бахтина представляют собой, по преимуществу пометы (в основном отчеркивания) на полях страниц книг и журналов, сделанных простым карандашом. Варьирующееся количество отчеркиваний (от одного до двенадцати) дает основание судить о важности выделенного места для Бахтина-читателя и исследователя. Изучение бахтинских маргиналий в последние годы приобретает особую значимость, поскольку позволяет не только зафиксировать круг реальных источников идей и трудов Бахтина, но и отчасти реконструировать процесс работы ученого над теми или иными изданиями, визуализировать и представить степень внимания и характер осмысления конкретного фрагмента, то есть заглянуть в лабораторию мыслителя. Комплексная работа Бахтина с источниками (чтение с карандашом, составление конспекта и цитирование или упоминание в своем тексте) может быть реконструирована сегодня в ограниченном виде: у значительного числа имеющихся в архиве конспектов нет исходного источника (т.е. книги с бахтинскими пометами), для большинства изданий с бахтинскими маргиналиями не обнаруживается конспектов или записей. Тем большую ценность имеют издания, позволяющие восстановить всю последовательность бахтинской работы с ними. Примером подтвержденного диалога может служить работа Бахтина с пятым томом собрания сочинений А. Бергсона (1914), монографией О.М. Фрейденберг (1936), сборниками «Ранний буржуазный реализм» (1936), «А.И. Герцен. 1812–1870» (1946), первым томом «Истории французской литературы» (1947). Экземпляры этих изданий с карандашными пометами Бахтина сегодня хранятся в личном архиве мыслителя (Москва) и в мемориальном фонде Центра М.М. Бахтина (Саранск). Чтение данных трудов в той или иной степени отразилось в работе Бахтина над текстом книги/диссертации/монографии о Рабле. Цель нашего доклада – исследование бахтинских маргиналий на страницах названных изданий в контексте актуальной для Бахтина проблематики конца 1930-х – 1960-е гг., выявление и презентация наиболее показательных примеров «диалогизированного чтения».

O conceito bakhtiniano  de “carnavalização” e suas ressonâncias na contemporaneidade

Beth Brait (PUCSP/USP/CNPq)

Dentro do eixo temático “Conceitos bakhtinianos em perspectiva”, este trabalho focalizará  o conceito de “carnavalização”, conforme apresentado no livro A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1987 [1965], que motiva este congresso, tendo em vista: (i) a presença desse mesmo conceito em Problemas da obra de Dostoiévski (2022 [1929]; Problemas da poética de Dostoiévski (2008 [1963]), assim diferenciado de carnaval: “Para entender corretamente o problema da carnavalização, deve-se deixar de lado a interpretação simplista do carnaval segundo o espírito da mascarada dos tempos modernos e ainda mais a concepção boêmia banal do fenômeno. O carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular dos milênios passados” (Bakhtin, PPD, p. 184); a produtividade do conceito para a análise realizada por Bakhtin em diferentes autores e obras, com destaque para Dostoiévski e Rabelais; (ii) outros conceitos constitutivamente relacionados a carnavalização, caso das diferentes formas de riso, caso dos discursos, quer artísticos ou não, que enfrentam a palavra autoritária, a palavra oficial; (iii) a produtividade do conceito de carnavalização, na contemporaneidade, mobilizado em produções acadêmicas, científicas - artigos científicos, teses, dissertações, capítulos de livros-, e, também, em lives em diferentes plataformas; (iv) razões para esse conceito, trabalhado por Bakhtin a partir dos anos 1920, alcançar reconhecimento e mobilização em diferentes áreas do conhecimento, caso da teoria literária, da análise do discurso, da Educação, das ciências humanas em geral.

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MESA 2

Rabelais e seus precursores. O riso e o grotesco no Satyricon de Petrônio

Biagio D’ângelo (UNB/CNPq)

Se, como disse T. S. Eliot, o presente é sustentado pelo passado e o sistema cultural (o literário, especificamente) é uma ordem que é constantemente subvertida, embora permaneça sempre uma “ordem”, também é muito sugestivo e produtivo pensar, como Jorge Luis Borges, que todo escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como modificará o futuro”. O paradoxo de Borges é muito apropriado quando se considera o estudo de Mikhail Bakhtin sobre a obra de François Rabelais. A ligação que Bakhtin propõe entre a teoria do romance e a perspectiva inaugurada ou, melhor ainda, consolidada por Rabelais é certamente muito válida e nos permite repensar o sistema literário não de um ponto de vista meramente cronológico e ortodoxo, mas de uma forma anacrônica. Bakhtin menciona em seu ensaio que, na literatura medieval, “o riso, o comer e o beber derrotam a morte”, e que esse é “um motivo que lembra a novela de Petrônio, A casta matrona de Éfeso (do Satyricon)”. De fato, o Satyricon de Petrônio é um dos poucos romances antigos que, ao reunir uma multiplicidade de gêneros literários codificados e parodiá-los, constitui-se como um híbrido e, portanto, como uma experiência estética extraordinariamente atual. Episódios como a “Ceia de Trimalchio” e a “Matrona de Éfeso”, que constituem as partes mais famosas do romance, podem ser lidos à luz da teoria bakhtiniana do cômico. O instrumento privilegiado desse estranhamento cômico é, no romance, a lente deformadora e revolucionária da paródia e, no caso específico, aqueles elementos cômicos e populares que povoam abundantemente as expressões teatrais da saturação e que fluirão para a produção culta e helenizante posterior dos dramas - fabulae - de Lívio Andrônico, Nevius e Plauto. Com esta palestra, levantamos a hipótese de que Petrônio não é apenas um precursor de Rabelais (à maneira do paradoxo de Borges), mas que Rabelais captou a tradição clássica desses elementos múltiplos e variados, sérios e cômicos, grotescos e filosóficos, e até mesmo das reviravoltas satíricas do romance antigo. A atualidade desse romance híbrido altamente original que é Gargantua et Pantagruel é confirmada pelo ensaio bakhtiniano que destaca seus processos de contaminação e mistura de qualquer código retórico possível disponível no sistema literário. 

Realismo grotesco na teoria e no romance versus realismo grotesco da época stalinista: Mikhail Bakhtin e Mikhail Bulgákov

Elena Vássina (USP)

Dois Mikhails, Bakhtin e Bulgákov, criaram em paralelo, mas por meio de livros de diferentes gêneros (teórico e de ficção) que dialogam tanto entre si, quanto com o contexto histórico. Busca-se compreender o motivo de a teoria do realismo grotesco e do carnaval de Мikhail Bakhtin começar a se formar no contexto soviético da época dos anos 1930. Isso ocorre exatamente ao mesmo tempo que um outro grande contemporâneo, Mikhail Bulgákov, está escrevendo o romance “Mestre e Margarida”, livro que tem como uma das linhas narrativas as imagens grotescas e carnavalizadas da realidade totalitária. A questão a ser respondida é: por que se manifesta essa simultaneidade do interesse por imagens da cultura popular do riso no meio do grande terror stalinista?

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MESA 3

A cultura popular na obra de Gógol pelas lentes de Bakhtin:

marcas de resistência

Maria Inês Batista Campos Noel Ribeiro (USP)

Ler o ensaio de Bakhtin sobre a obra do escritor ucraniano Nikolai Vasilyevich Gógol [1809-1852] propicia recuperar a discussão de cultura popular versus cultura oficial nos contos desse “genial intérprete da consciência popular” do século XIX. Gógol narra a vida cotidiana de sua terra natal “na própria língua que fala” (Bakhtin, 1998, p.436). Inicialmente o ensaio era para ser um capítulo da tese de doutorado sobre Rabelais, defendida em 1946; entretanto, esse texto foi excluído por exigência da Comissão de Certificação Superior (VAK), agência governamental da Rússia. Mas Bakhtin marcou sua posição: “[...] é preciso estudar Gógol, estudar esse riso não estudado, que se conecta com a academia espiritual, com os bursacos, aos quais Gógol estava ligado”. (Grillo, 2022, p. 22). Então, o ensaio Rabelais e Gogol: A arte da palavra e a cultura popular do riso, foi publicado em Questões de literatura e de estética (Moscou, 1975, São Paulo, 1988), embora não apareça em nenhum dos compêndios anglófonos. Em poucas páginas, Bakhtin analisa alguns contos de Gógol, procurando compreender a arte no interior do fluxo das formas festivas populares, que aparecem em coletâneas tanto do período folclórico-ucraniano (com Noites na granja perto de Dikanka) como do período petersburguês (com Contos de São Petersburgo). Bakhtin apresenta uma metodologia de leitura de Gógol na qual as contradições são vistas como parte de uma cultura popular que ganha vida nova no solo da cultura do riso. O objetivo da presente comunicação é discutir a forma como Bakhtin dialoga com os contos de Gógol – em especial, Tarás Bulba (1835) e O Capote (1842) – ao procurar identificar neles as formas de resistência popular. Em Tarás Bulb,a espera-se compreender como as festas populares do folclore ucraniano e do realismo grotesco explicitam a cultura do riso popular. Em O Capote, a visão de mundo definida pelo riso afrontando a cultura oficial do século XIX em São Petersburgo sinaliza a renovação da linguagem e apresenta o estilo gogoliano no uso de palavras enigmáticas, exageradas.

Língua única, dialetos sociais e multilinguismo: o futuro no Estado Nacional e na língua nacional franceses: apontamentos metalinguísticos de Bakhtin sobre a linguagem vernacular, literária e da literatura no contexto da obra de François Rabelais

Geraldo Tadeu Souza (UFSCAR)

 

A obra de Bakhtin sobre Rabelais é uma obra-prima que eleva ao seu mais alto grau a proposição, por Bakhtin, de uma ciência dialógica da linguagem, a Metalinguística, ciência em construção nomeada por ele em “Problemas da Poética de Dostoiévski” (1961-1962), mas não mencionada em seu livro “A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento” (1965). O objeto da Metalinguística, as relações dialógicas e o discurso bivocal, podem ser investigados entre estilos de linguagem e dialetos sociais. Nosso objetivo, nesta comunicação, é compreender como a diversidade de línguas nacionais envolvidas nesse processo histórico se constituem, ou seja, as relações dialógicas em que essas novas línguas se formam enquanto linguagem vernacular, literária e da literatura nos limites das teses de Bakhtin desenvolvidas neste livro. Em sua defesa às objeções feitas a sua tese, Bakhtin disse que queria propor “a resolução do problema de Rabelais de um ponto de vista revolucionário” e que a obra “apresenta o caráter sério do riso na consciência renascentista”. Como um inovador obsessivo, Bakhtin faz isso de diferentes formas, ao inserir a obra na história da cultura popular, da filosofia do riso, do realismo grotesco, e na história das línguas nacionais no contexto da consciência linguística renascentista, tudo isso no período histórico do regime totalitário estalinista e da língua única na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Notadamente em “As imagens de Rabelais e a realidade de seu tempo”, Bakhtin problematiza a história política e ideológica do Renascimento com a criação do Estado Nacional e das Línguas nacionais no processo de destronamento do latim clássico em sua pureza, e a multiplicidade das línguas nacionais novas, faladas e escritas, enquanto filosofias sociais concretas penetradas por um sistema de valores e inseparáveis da prática cotidiana e da luta de classes, tornando a obra de Rabelais e a obra de Bakhtin um documento dialógico importante sobre a filosofia da linguagem e a história das línguas nacionais.

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MESA 4

A (bi)tonalidade (bi)vocal de “Índios” e a catequese de Renato Russo

Luciane de Paula (UNESP)

As concepções de bitonalidade e bivocalidade, trabalhadas por Bakhtin (a primeira, no livro em que Bakhtin escreve sobre Rabelais - “A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento” – e a segunda, em “O discurso no romance”), evidenciam-se na oralidade. A bitonalidade, em música, é uma variação da politonalidade e esta germina a polifonia barroca (típica dos cantos), enquanto a bivocalidade ritmiza, de maneiras variadas, a arena discursiva, em que a luta de classes aparece de modo vivo. Parte-se da premissa que, na canção “Índios”, da Legião Urbana, em tom de ladainha ascendente pela escala melódica típica de uma “escada Santos Dumont”, a sobreposição valorativa é revelada pela ambiguidade, grafada entre aspas no título, atribuída aos “Índios”, seja em processo histórico de colonização, seja pela mentalidade e pelo comportamento, já catequizado, flagrado pela repetição do canto estrófico do cantor-compositor (Renato Russo), no cotidiano, em suas interações internas e externas. A crítica aparece nesse enunciado pela concomitância e pela modulação bitonal e bivocal que revelam que, mesmo a crítica mais aguda é passiva e quase dócil diante da selvageria da exploração humana. A proposta aqui é pensar como a bitonalidade e a bivocalidade, musical/vocal, constroem, por meio de imagens figurativas consagradas, uma escala valorativa ascendente do grave ao agudo, persistente, exploradora, doentia e abusiva. A carnavalização se encontra na instrumentalização que, de jeito leve e como pano de fundo, desvela as violências pela sonoridade artificial do teclado sintetizado do pop-rock dos anos 80/90 do século passado. A metodologia dialético-dialógica caminha do linguístico para o metalinguístico e considera relações da canção com eventos que situacionalizam o enunciado. A reflexão se justifica pela produtividade das noções. O objetivo é refletir sobre como a sobreposição de vozes sociais pode acontecer na canção por meio de estratégias formais bitonais e bivocais. Os resultados demonstram que a forma modular, anunciada pelo prelúdio barroco (de inspiração bachiana), com uma desenvoltura aparente de canto monológico, (des)velada pela bitonalidade e pela bivocalidade polêmica, não polifônica da canção, finalizada em cadência plagal, reflete e refrata uma mentalidade “robótica”/”zumbi”, calcada em valores religiosos, políticos, econômicos e culturais do outro-explorador, incorporada pelos sujeito da canção, mesmo em sua denúncia reflexiva (passiva).

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MESA 5

Divulgação científica com humor:  a ambivalência do riso como tecnologia discursiva em tempos de pós-verdade nas redes sociais

Urbano Cavalcante Filho (IFBA / UESC /Diálogo-USP/CNPq)


Neste trabalho, nossa intenção é analisar o funcionamento do discurso de divulgação científica no ambiente cibernético, levando em consideração a dimensão que o riso (em suas mais diferentes manifestações, como humor, sátira e memes) assume enquanto estratégia performática dos sujeitos divulgadores nas redes sociais. Nesse sentido, observaremos como a força subversiva, regeneradora e dialógica do riso, enquanto prática discursiva e social, é utilizada como operador de deslegitimação das notícias falsas, das fake news e das fake sciences, tão comuns nesse contexto atual de pós-verdade. A fundamentação teórica central desta reflexão apoia-se na perspectiva bakhtiniana, especialmente na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (Bakhtin, 2010 [1965]). Nesse estudo, Bakhtin examina o riso dotado de função ambivalente e subversiva, atuando simultaneamente como forma de crítica e como instrumento de renovação simbólica da realidade social. Segundo o filósofo russo, o riso popular carnavalesco, presente na literatura de Rabelais, não apenas ridiculariza o discurso oficial, mas cria uma linguagem própria, marcada pela inversão, pela paródia e pela degradação regeneradora. Pensando nos tecnodiscursos da divulgação científica nas redes sociais, observamos a operacionalização do riso  de maneira semelhante, à medida em que desestabiliza discursos alternativos, infundados de desinformação e negação da ciência, ao revelar o ridículo de narrativas desinformativas. Assim, tomando como objeto de análise tecnodiscursos presentes nas redes sociais Instagram, Facebook e X/Twitter, observaremos como a constituição do sujeito da ciência nas redes sociais opera a partir de tensões entre o discurso oficial e sério da ciência, mas também as formas populares, cômicas  e híbridas que o sujeito divulgador lança mão nas redes, na busca da construção de credibilidade, aproximação entre os interlocutores e enfrentamento da desinformação.

“Nós vamos sorrir”: o riso como forma de resistência discursiva em testemunhos autobiográficos da ditadura civil-militar brasileira

Yuri Andrei Batista Santos (Pós-doutorando no PPG em Filologia e Língua Portuguesa. Grupo Diálogo, USP/Laboratoire EDA – Éducation, Discours et Apprentissages, Université Paris-Cité)

Em um contexto histórico ainda marcado por silenciamentos, apagamentos e disputas em torno da memória da ditadura civil-militar brasileira, os testemunhos autobiográficos desempenham um papel fundamental na reconstrução crítica do passado e na afirmação de uma escuta ética do trauma. Esta comunicação propõe uma análise em torno do riso enquanto categoria discursiva nos testemunhos Ainda estou aqui (2014), de Marcelo Rubens Paiva, Volto semana que vem (2014), de Maria Pilla, e Em nome dos pais (2017), de Matheus Leitão, todos marcados pela experiência de filiação afetiva com vítimas da repressão. O objetivo é investigar como, nesses relatos, o riso — em sua forma ambivalente, polifônica e irreverente — permite ao testemunho autobiográfico deslocar-se da solenidade discursiva frequentemente esperada diante da dor para uma via de resistência ética e crítica. Metodologicamente, o estudo articula o conceito bakhtiniano de riso, tal como desenvolvido na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (2010[1965]), às teorias do testemunho e do auto-bio-grafismo. Nessa perspectiva, o riso é compreendido como força que desestabiliza a lógica da memória oficial, reconfigura os cronotopos do trauma e reinscreve o ponto de vista do sujeito enunciador em regimes de linguagem heterogêneos, sensíveis ao afeto, à fabulação e à performatividade da lembrança. As análises indiciam que, longe de negar a dor, o riso nestes testemunhos opera como gesto de recomposição da experiência vivida, ativando zonas de ambivalência que permitem simultaneamente o luto, a crítica e a ressignificação do vínculo com o passado.

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MESA 6

Rabelais, Bakhtin e tradução

Ekaterina Vólkova Américo (UFF/Diálogo)

A reflexão sobre possíveis vínculos entre os estudos da tradução e o pensamento bakhtiniano teve como ponto de partida o processo de tradução do livro de Mikhail Bakhtin A obra de François Rabelais e a cultura popular da Idade Média e do Renascimento (1965), realizada por Sheila Vieira de Camargo Grillo e por mim. A meu ver, o paralelo entre a teoria de Bakhtin e do Círculo e os estudos da tradução pode ser pensado em três possíveis direções: como um diálogo com alguns conceitos (exotopia, compreensão ativa e encontro dialógico; inacabamento/inconclusibilidade; grotesco; polifonia; carnavalização); como uma possibilidade de examinar as traduções de Bakhtin e do Círculo pelo prisma dos estudos da tradução; e como um conjunto de reflexões de Bakhtin sobre a tradução. Em A obra de François Rabelais e a cultura popular da Idade Média e do Renascimento, publicada na União Soviética no fim do Degelo, o multilinguismo e a tradução se configuram como potências desestabilizadoras e carnavalizantes. O próprio livro com a sua linguagem viva e temas-tabu ‒ a alegre relatividade de qualquer poder, a liberdade absoluta, a força reprodutiva do baixo material e corporal, os elogios e xingamentos, as conversas francas de banquete ‒ desafiavam as estruturas oficiais monologizantes e obsoletas. Por fim, o sucesso extraordinário da obra de Bakhtin e do Círculo mundo afora se deve precisamente às traduções que transformaram um autor marginalizado pelo poder oficial em um dos mais relevantes pensadores do século XX.

Do livro à tese e da tese ao livro de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1965): projeto, contexto, desfecho

Sheila Vieira de Camargo Grillo (USP/Diálogo/CNPq)

O livro de M. Bakhtin sobre François Rabelais traduzido, até o momento, do francês para o português e publicado em 1987 com o título “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais” 2010[1965]) tem uma longa história que começa nos anos 1930 e que “finaliza” em 1965 com sua publicação na União Soviética. Considerando que, na Rússia, esse percurso já é bastante conhecido entre especialistas da obra de M. Bakhtin, porém, no Brasil, essas informações são escassas e ainda pouco divulgadas, nosso objetivo é recuperar as circunstâncias em que o texto foi escrito  - dos anos 1930 até sua publicação em novembro/dezembro de 1965 - com base, sobretudo, em dois tipos de fontes: 1) documentos da época da escrita, da defesa da tese e da outorga do título de doutor pela VAK (Comissão de Certificação Superior): atas da comissão científica de defesa, cartas, pareceres de oponentes oficiais e de especialistas das editoras, estenograma da defesa, presentes em “M. M. Bakhtin. Obras reunidas” (1997-2012); 2) artigos e livros de especialistas russos que escreveram e interpretaram essas fontes: Popova (2008, 2009, 2010), Pankóv (2010) e Alpátov (1997, 1999). Objetivamos fornecer aos estudiosos brasileiros da obra de M. Bakhtin dados sobre o contexto histórico e intelectual que auxiliarão na compreensão do longo processo de elaboração do texto, das interferências sofridas por ele durante sua avaliação na VAK e da personalidade científica de M. Bakhtin, com impactos sobre o livro publicado em 1965.