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O PLURILINGUISMO NO ROMANCE

texto de Urbano Cavalcante Filho

O segundo encontro do subgrupo de pesquisa da Teoria Bakhtiniana, ocorrido em 08/04/2013, sob a coordenação da Profª Sheila Grillo, teve como objeto de estudo e discussão a 3ª parte do ensaio O discurso no romance, de Mikhail Bakhtin.

A discussão tem início com a fala de Urbano pontuando, apoiado nas palavras de Faraco (2003) que, para o Círculo de Bakhtin, qualquer palavra (qualquer enunciado concreto) encontra o objeto a que se refere já recoberto de qualificações, envolto por uma atmosfera social de discursos, por uma espécie de aura heteroglótica. (Curiosamente, percebeu-se que heteroglossia, termo do inglês utilizado por Faraco para se referir à pluralidade discursiva, ao plurilinguismo bakhtiniano, não se encontra dicionarizado em português).

Nessa terceira parte do ensaio, intitulada O plurilinguismo no romance, vem à tona um dos conceitos mais significativos da teoria bakhtiniana: o plurilinguismo, definido por Bakhtin como “o discurso de outrem na linguagem de outrem” (2010, p. 127). Urbano propõe então que a discussão dessa unidade do ensaio, a partir de sua leitura, seja feita a partir de 3 partes que ele julgou fundamentais, e que poderiam ser assim divididas e subintituladas: 1) Análise dos procedimentos plurilinguísticos no romance humorístico, 2) Introdução e utilização estilística do plurilinguismo e 3) A bivocalidade do discurso literário.

1. A análise dos procedimentos plurilinguísticos no romance humorístico

Considerando a diversidade das linguagens do mundo e as variadas formas que o plurilinguismo se apresenta na prosa literária (o romance), Bakhtin, nessa primeira parte do texto, elege o romance do tipo humorístico (apresentando como representantes Henry Fielding, Laurence Sterne , Charles Dickens (ingleses), Theodor Von  Hippel e Jean-Paul (alemães)) para analisar formas típicas e fundamentais de aparecimento do plurilinguismo no romance. Então mostra, a partir da análise de alguns trechos do romance Little Dorrit de Charles Dickens (1891), as maneiras como o autor manipula as vozes (forma dissimulada, forma aberta, motivada pseudo-objetivamente, construções híbridas etc.), onde se é possível perceber na composição sintática, por exemplo, dois tons, dois estilos, duas “linguagens”, duas perspectivas semânticas e axiológicas distintas, sem,  necessariamente,  apresentar nenhuma fronteira formal que identifique a inserção de vozes no discurso. Inti pontua, a partir de sua experiência leitora de Dickens, como a ironia, o humor, a paródia, essas “outras vozes”, esses outros tons, são bem marcantes e perceptívies no romance do autor inglês.

 2. Introdução e utilização estilística do plurilinguismo

Nesse segundo momento do texto, o teórico russo salienta que a introdução das diversas “linguagens” com suas perspectivas socioideológico-verbais dá-se de forma impessoal “por parte do autor”, mas que realizam a refração das suas intenções. Ou seja, tanto no objeto da narração quanto no narrador, o autor se realiza e realiza o seu ponto de vista, envolto de qualificação e sua tonalidade semântico-axiológica.

Luiz Rosalvo problematiza esse ponto, destacando a importância e a necessidade do domínio de dispositivos analíticos por parte do leitor/pesquisador para a percepção desses dois momentos da narração: o plano do narrador, com sua perspectiva expressiva e semântico-objetal, e o plano do autor que fala de modo refratado nessa narração. E é essa percepção do segundo plano que permite que se tenha a compreensão da obra como um todo. Sheila e Elise destacam também, a partir de exemplos da obra dostoievskianas, que a compreensão da obra e a percepção desse segundo plano só é possível se o leitor tiver conhecimento também do contexto sócio-histórico da época e das condições de produção do autor, bem como da visão de mundo vigente no período, entre outros elementos.

O discurso das personagens é a outra forma de introdução e organização do plurilinguismo no romance. Isso significa dizer que as refrações das intenções do autor também se dão pelas palavras dos personagens no romance que, embora possuam autonomia semântico-verbal e perspectiva própria, acabam por se tornar a segunda linguagem/voz do autor. Com isso, Bakhtin exemplifica, através de alguns exemplos das obras Pais e Filhos e Terra Virgem de Turguêniev, como o plurilinguismo social é introduzido tanto nos discursos diretos da personagens como no discurso do autor, ao redor dos personagens.

A terceira e última forma de utilização, considerada por Bakhtin como uma das formas mais importantes da introdução e organização do plurilinguismo no romance é a dos gêneros intercalados, referindo-se ao fato de ser possível introduzir, no romance, linguagens que estratificam a unidade linguística e aprofundam de modo novo a sua multiplicidade. Em outras palavras, qualquer outro gênero pode ser introduzido no romance, tanto literário quanto extraliterário (a exemplo de um poema, novela ou gênero científico, religioso), habitualmente conservando sua estrutura e sua autonomia e originalidade tanto estilística quanto linguística. No entanto, ressalta o estudioso, há gêneros que, ao serem introduzidos no romance como elemento estrutural, por sua força estilístico-composicional, acabam por determinar a estrutura do romance sem sua totalidade, como é o caso da confissão, do diário, a biografia, a carta, entre outros.

3. A bivocalidade do discurso literário

Finalizando o ensaio, em sua última parte, Bakhtin ratifica a ideia central da sua reflexão, afirmando que o plurilinguismo introduzido no romance é “o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor” (p. 127), ou seja, trata-se de uma palavra bivocal, já que ela exprime a intenção direta da personagem que fala e a intenção semântico-axiológica refratada do autor. Dessa forma, a teoria bakhtiniana encara o discurso com uma bivocalidade que lhe é inerente, como se vê no discurso humorístico, irônico, paródico, dos gêneros intercalados. Trata-se de um discurso internamente dialogicizado, onde duas vozes coexistem e se cruzam multiformemente, correlacionando-se numa dialogicidade intrínseca característica, apoiando-se mutuamente, interiluminando-se, contrapondo-se parcial ou totalmente, parodiando-se, arremedando-se, polemizando velada ou explicitamente.

Referências

BAKHTIN, M. O discurso no romance. Questões de literatura e estética. A teoria do romance. Trad. A.F. Fernadini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 71-210.

BAKHTIN, M.M. Slovo v romane. In: BOTCHAROV, S.; KOJINOV, V.V. M.M. Bakhtin Sobránie sotchinénii t. 3: teóriia romána (1930-1961 gg.) Moscou: Iasyki slaviánskikh kultur, 2012. p. 9-179.

FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003