Conceitos de “forma arquitetônica” e “autoria” em discussão na 1a Reunião de 2015 do subgrupo de pesquisa bakhtiniana da USP

por Inti Queiroz e Sheila Grillo

O primeiro encontro do ano do subgrupo de pesquisa bakhtiniana da USP, grupo Teoria Bakhtiniana (GEDUSP/CNPq), foi realizado no dia 06 de março de 2015 sob a coordenação da Profa. Dra. Sheila Vieira de Camargo Grillo.

Estavam presentes, além da coordenadora do grupo, os pesquisadores Arlete Fernandes Higashi, Inti Queiroz, Luiz Rosalvo Costa, Simone Ribeiro Veloso e a pesquisadora convidada da Universidade de São Petersburgo, a Dra. Maria Glushkova que atualmente está desenvolvendo uma pesquisa de pós-doc no Brasil.

Esta primeira reunião do ano tratou da discussão dos conceitos teóricos de autoria e forma arquitetônica no Círculo de Bakhtin. Utilizamos as leituras das obras: “O método formal nos estudos literários” (P. Medviédev) e “O problema do conteúdo, do material e da forma nos estudos literários” (M.M. Bakhtin). Os conceitos foram escolhidos visando não apenas ao retorno do grupo à discussão dos textos do Círculo, mas também a auxiliar na reflexão para a escrita de um artigo da estudante de doutorado Inti Queiroz.

Os conceitos supracitados foram anteriormente discutidos pelo grupo de pesquisa no ano de 2012, quando realizamos a primeira leitura em conjunto do texto “O problema do conteúdo do material e da forma nos estudos literários” (links para as discussões anteriores elencados no final deste artigo).

Ainda que deixemos de lado os debates sobre a autoria desses textos do Círculo e a suposta proximidade histórica de escrita , a leitura conjunta destas duas obras nos remete diretamente às reflexões sobre autoria. Não é nossa pretensão, neste momento, discutir a autoria das obras, porém, as diferenças de autoria e a historicidade de ambas são perceptíveis em cada uma de suas páginas e, de certo modo, chama atenção em nossas leituras.

É perceptível que o principal diálogo entre as duas obras é a abordagem crítica que ambas praticam ao que Bakhtin chama de estética material, isto é, o olhar dos formalistas russos para a criação artística.

Nesta breve reflexão, buscaremos trazer um pouco do que foi discutido em nossa reunião, visando especialmente a tratar dos dois conceitos presentes nestas obras: autoria e forma arquitetônica.

A condução da leitura das obras foi iniciada pela doutoranda Inti Queiroz que tratou do ponto central de debate sobre a crítica à estética material dos formalistas russos e como isso auxiliou aos dois teóricos, tanto Mikhail Bakhtin, quanto Pavel Medviédev em suas reflexões de construção das teorias do Círculo, em especial no que se refere aos conceitos teóricos em questão. A Prof. Dra Sheila Grillo completou as reflexões relativas às duas obras, buscando também a interação e participação dos outros membros do grupo de pesquisa. 

O problema do conteúdo, do material e da forma nos estudos literários – M. M. Bakhtin

Inti Queiroz

Para os formalistas russos, a análise estética da criação verbal deveria estar condicionada à análise técnica da linguística e à primazia do material. A proximidade com o futurismo e com o positivismo da época conduziram as reflexões dos formalistas russos da primeira fase a estabelecer a análise estética, em que o material, visto como motivação da criação artística, orientava a forma do objeto estético. A forma é compreendida como forma do material. Transforma-se em sua “ordenação anterior isenta de momento axiológico”.

Tanto Bakhtin quanto Medviédev buscaram desconstruir esta abordagem estética material e alguns dos conceitos que permeiam este debate são justamente os conceitos de forma arquitetônica e autoria. Para Bakhtin, a estética material não pode estabelecer a diferença essencial entre o objeto estético e a obra exterior, entre as ligações no interior do objeto, pois a todo o momento existe uma tendência a misturar estes elementos. Bakhtin evidencia que a análise estética deve ser orientada para o que representa a obra, para a atividade estética do artista e do expectador, contemplador. Essa análise deve levar em conta:

  • Objeto estético – conteúdo da atividade estética.

  • Objeto estético arquitetônico – estrutura puramente artística do objeto estético (singularidade da obra).

  • Obra na sua realidade original puramente cognitiva (científica) linguística e independente do objeto estético.

  • Obra exterior (material) – objeto estético a ser realizado como aparato técnico da realização estética.

Para proceder a análise estética, Bakhtin sugere a utilização do Método Teleológico que visa a compreender a obra exterior (material) e compreender a composição da obra (material / formal/ realização), isto é, compreender o conjunto de fatores da impressão artística e sua realização.

Por meio dos conceitos de forma composicional e forma arquitetônica, Bakhtin apresenta a visão do Círculo em relação à forma ainda na primeira parte do texto. Chama atenção sobre o gênero romance como uma possibilidade de forma arquitetônica da realização artística de um acontecimento histórico. Diferencia os dois tipos de forma com o exemplo de que o drama seria uma forma composicional, enquanto a trágico e o cômico seriam formas arquitetônicas. Com isso, busca comprovar que cada forma arquitetônica é realizada por meio de formas composicionais definidas.

São formas puramente arquitetônicas: o humor, a heroificação, o tipo, o caráter. São formas de gênero puramente composicionais: o poema, o conto, a novela, o lírico e o romance. São articulações puramente composicionais: o capítulo, a estrofe, o verso. O ritmo na poesia pode ser tanto uma forma composicional (como ordenação do material) quanto forma arquitetônica (controle emocional, o valor da aspiração e a tensão).

Bakhtin diz que as formas arquitetônicas são as formas dos valores morais e físicos do homem estético, as formas do acontecimento em seu aspecto de vida particular, social e histórico, são realizações e aquisições. São formas de existência estética na singularidade de uma obra. A forma arquitetônica escolhe uma forma composicional.

Na segunda parte da obra, trata do problema do conteúdo e logo na primeira página aborda a questão da cultura e do ponto de vista do autor como questões centrais de sua teoria. O ponto de vista do criador da obra artística, ou mesmo outro enunciado concreto de criação verbal, encontra justificação e fundamento apenas na interação com outros pontos de vista. É na fronteira dos enunciados, com outras esferas, outros discursos, outros interlocutores e em diálogo com outras unidades culturais, que a obra mostra de fato sua singularidade. A partir disso, a arte cria uma nova relação, uma nova axiologia com o que já se tornou realidade para o conhecimento (cognitivo) e para o ato (ético). Na obra de arte, o conteúdo se apresenta formalizado, isto é, conteúdo e forma se interpenetram, são indissolúveis para a análise estética. O artista deve ocupar uma posição estética em relação à realidade extraestética do conhecimento e do ato. Forma e conteúdo são dois sistemas axiológicos que se encontram numa interação essencial e axiologicamente tensa. O trabalho técnico desenvolvido pelo artista não pode aparecer na obra de arte. O processo de realização do objeto estético é um processo de transformação sistemática de um conjunto verbal compreendido linguística e composicionalmente no todo arquitetônico de um evento esteticamente acabado. As relações linguísticas e composicionais transformam-se em relações arquitetônicas extraverbais. Bakhtin diz que é importante compreender justamente a “originalidade do objeto estético”, isto é, a originalidade da ligação puramente estética dos seus elementos, da sua arquitetônica.

A forma deve ser tratada de duas maneiras:

  • A partir do interior do objeto estético puro, como forma arquitetônica axiologicamente voltada para o conteúdo.

  • A partir do interior do todo composicional e material da obra – estudo da técnica da forma realizada no material e determinada pelo objeto estético.

A forma arquitetônica também deve ser observada enquanto forma do conteúdo, com a unificação e organização dos valores cognitivos e éticos.

O autor-criador é um elemento / aspecto constitutivo da forma artística. Ocupa uma posição criativa / produtiva em relação ao material e ao conteúdo. Ele penetra no acontecimento isolado e nele se torna criador sem se tornar participante. Essa não participação na obra o torna autor.

“O autor, como momento constitutivo da forma, é a atividade, organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa. (…) A personalidade do criador é invisível e inaudível, mas é interiormente experimentada e organizada como uma atividade que se ouve, se move, se lembra, uma atividade não encarnada, que encarna, e em seguida já está refletida no objeto formalizado (p.68). O objeto estético é uma criação que inclui em si o criador, nela o criador se encontra e sente intensamente a sua atividade criativa. (…) (p.69).”

O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica – Pavel Medviédev

Inti Queiroz e Sheila Grillo

Na obra “O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica” (Trad. E. Vólkova e S.C. Grillo. SP: Contexto, 2012), aparecem os termos “construção arquitetônica”, “sentimento arquitetônico”, “arquitetônica” e apenas em uma passagem: na seção “As tarefas construtivas da arte”, p. 92, em que o autor faz uma revisão dos princípios do formalismo da Europa Ocidental. As expressões “construção arquitetônica” e “sentimento arquitetônico” estão em uma citação do teórico da arte e escultor alemão Adolfo Hildebrand, presente na obra “O problema da forma nas artes plásticas” (trad. Francesa “Le problème de la forme dans les arts plastiques”. Trad. E. Beaufils. Paris: L’Harmattan, 2002). A “arquitetônica” é a unidade construtiva da obra de arte em que a atividade artística prevalece sobre a imitação da realidade extra-artística. A “primazia da função construtiva” concebe a obra como uma totalidade autossignificante e construtiva que determina o modo da introdução do conteúdo objetivo (da realidade extra-artística) no seu interior. O termo “arquitetônica” não aparece mais em “O método formal”, mas as expressões “construção da obra poética” e “construção poética” ocorrem reiteradamente e parecem ser seus termos equivalentes. De acordo com o método sociológico, o meio/horizonte ideológico e a avaliação social são conceitos e princípios fundantes da construção da obra poética (ou da literatura).

Para Medviédev, a obra de arte deve ser vista como uma “totalidade fechada em si” e seus aspectos encontram significado no exterior da obra. Ele entende que a arquitetônica para Hildebrand representa a “unidade construtiva da obra”. Uma obra de arte “é parte de um espaço real e está organizada como uma unidade” e esta unidade é “autossignificante e construtiva”.

Em diversas partes do livro, Medviédev trabalha com a expressão “unidade de construção” referindo-se ao material construído e transformado e organizado formalmente em unidade poética por meio de questões sociais e históricas, como um acontecimento da comunicação social. Diz ainda que “O significado construtivo de cada elemento somente pode ser compreendido na relação com o gênero” (p.194). Chama atenção para a importância da dupla orientação do gênero na totalidade artística. Nesta dupla orientação, primeiro o gênero se orienta aos ouvintes e receptores em determinadas condições de realização e percepção do ato e em segundo plano, está orientada à vida, a partir de seu conteúdo temático. Uma orientação é determinada pela outra a partir de uma relação de interdependência indissolúvel. Pra ele, cada um dos Gêneros efetivamente essenciais são “um complexo sistema de meios e métodos de domínio consciente e de acabamento da realidade”. (p. 198)

A questão da autoria no livro de Medviédev é pensada em diversos pontos em diálogo com o conceito de avaliação social. Para ele é a avaliação social que atualiza o enunciado, que determina a escolha do objeto, da palavra, da forma, conteúdo e da combinação entre eles.  Ele diz que é a “avaliação social que organiza a comunicação” ainda que esteja diretamente ligada a um ser, é prioritariamente social e ideológica e será realizada no gênero. “O artista deve aprender a ver a realidade com os olhos do gênero” (p. 199). Medviédev compreende a importância da interação no processo de criação do enunciado e novamente aborda o gênero como ponto central dessa criação e interação quando fala que a escolha do gênero depende da “lógica social objetivo das inter-relações”. (p.220)

Debate sobre o tema

No debate sobre os textos selecionados, os participantes do grupo de pesquisa buscaram trazer contribuições para a reflexão partindo dos conceitos evidenciados, mas também relembrando outros textos do Círculo em alguns momentos. A professora Sheila, ao falar sobre o livro de Medviédev, ressalta a importância de percebermos a discussão e o diálogo com o formalismo ocidental quando ele fala do conceito de arquitetônica na página 92 da obra desse autor. Luiz Rosalvo fala da forma arquitetônica como percepção cultural e ideológica. Arlete relembra a questão da forma arquitetônica diretamente ligada ao conteúdo e aos valores. Simone, em diálogo com o grupo, fala da arquitetônica em dois níveis distintos porém em diálogo: o cultural, histórico e social, de um lado, e a singularidade da obra, de outro.

Após um exercício de reflexão, o grupo concorda que a forma arquitetônica é percebida num determinado enunciado a partir de um conjunto de percepções culturais, históricas, sociais, ideológicas, construída por uma forma composicional numa singularidade estética. Os valores ideológicos assumidos por um determinado autor, ao se apropriar de determinado material, organiza o transforma em uma obra com forma e conteúdo.

Discussões anteriores do grupo sobre os temas tratados:

O problema do conteúdo do material e da forma: https://circulobakhtiniano.wordpress.com/2012/03/

Forma: https://circulobakhtiniano.wordpress.com/2012/04/28/forma/

Forma composicional https://circulobakhtiniano.wordpress.com/2012/04/

Forma arquitetônica: https://circulobakhtiniano.wordpress.com/2012/05/02/forma-arquitetonica/

Bibliografia:

BAKHTIN, M.M. O problema do conteúdo do material e da forma na criação literária. In: Questões de literatura e estética: A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010. p. 13 – 70.

BAKHTIN, M.M. Probliéma formy, soderjániia i materiála v sloviésnom khudójestvennom tvórtchestve. BOTCHAROV, S.G. NIKOLAEV, H. I. (Red.)Sobrárinie Sotchiniénii t. 1 Filosófskaia estétika 1920-kh godóv. Moskvá: Rússkie slovári/Iazyki slaviánskoi kultyry, 2003. p. 265-325.

BAKHTINE, M. Problème du contenu, du matériau et de la forme dans l’œuvre littéraire. In: Esthétique et théorie du roman. Trad. Daria Olivier. France: Gallimard, 2004 [1924], p. 21-82.

MEDVIEDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Ekaterina A. . Vólkova e Sheila V.C. Grillo. S. Paulo: Contexto, 2012.