O autor e a personagem / As relações entre autor e a personagem

O autor e a personagem, por Inti Queiroz

O texto “O autor e a personagem” que abre o ensaio “O autor e a personagem na atividade estética” (APAE)  escrito em meados do início dos anos 1920 e presente na coletânea “Estética da criação verbal” nos remete de pronto ao texto “ O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária” (PMCF) escrito provavelmente entre 1923 / 1924. Já no título é possível estabelecer o diálogo entre os dois enunciados, pois o conceito de autoria é em ambos os textos ponto central da reflexão. Se no texto PMCF o conceito de autoria é entendido a partir de reflexões estéticas e fenomenológicas, em “O autor e a personagem” Bakhtin demonstra trazer novamente a questão em sua reflexão abordando já neste primeiro capítulo do ensaio uma definição do conceito de autoria em diálogo com outros conceitos relevantes para a teoria bakhtiniana. No início do capítulo Bakhtin busca demonstrar as diferenças entre as categorias de autor-pessoa e autor-criador “o autor reflete a posição volitivo-emocional da personagem e não sua própria posição em face da personagem; (...) o autor cria, mas vê em sua criação apenas no objeto que ele enforma, isto é, vê dessa criação apenas o produto em formação e não o processo interno psicologicamente determinado” (BAKHTIN, 2010, p. 5) Adiante ao tratar mais profundamente da questão da autoria que ele define como “o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra” Bakhtin desenvolve o tema trazendo á luz outros conceitos teóricos pertinentes para o início da construção do que poderíamos chamar de uma arquitetônica de sua obra. “A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e que sendo imanentes, a tornariam falsa”. Esses elementos a que Bakhtin se refere relacionados à arquitetônica de uma autoria são desenvolvidos ao longo da página 11 do referido capítulo. O primeiro elemento trazido para a reflexão é a questão da visão. “O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas”(idem, p.11) a essa visão extra localizada Bakhtin chama de excedente de visão ou como algumas traduções apontam a exotopia. O segundo elemento apontado é a questão do acabamento e do acabamento do acontecimento que ocorre de forma externa ao texto e deve ser pensado a partir da relação entre vida e arte. “Não posso viver do meu próprio acabamento” (Idem, p.11) Para Bakhtin a vida não tem acabamento enquanto vida, apenas na arte é possível darmos um acabamento concreto para um acontecimento. Desta forma demonstra que é a partir do olhar exotópico, do excedente de visão que o autor realiza o acabamento da obra. “O autor deve colocar-se à margem de si, vivenciar a si mesmo não no plano em que efetivamente vivenciamos nossa vida; só sob essa condição ele pode completar a si mesmo, até atingir o todo, com valores que a partir da própria vida são transgredientes a ela e lhe dão acabamento; ele deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro (idem, p. 13). O terceiro elemento levantado por Bakhtin é a diretriz volitivo-emocional concreta mostrada a partir da consciência da personagem, seu sentimento e seu desejo de mundo e realizada pelo acabamento do autor “é abrangida de todos os lados, como em um circulo, pela consciência concludente do autor a respeito dele e do seu mundo” (idem, p. 11) O quarto e último elemento, porém não menos importante e que possibilita nossa reflexão acerca da arquitetônica é o centro axiológico que Bakhtin define como “o todo da personagem e do acontecimento a ela referente, ao qual devem estar subordinados todos os valores éticos e cognitivos.” (idem, p.11)

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As relações entre autor e personagem, por Simone Ribeiro de Avila Veloso

            Em “O autor e a personagem”, primeiro capítulo de “O autor e a personagem na atividade estética”, Bakhtin pontua, inicialmente, a ausência de uma abordagem teórica estética que considere a relação entre personagem e autor, não como elementos da vida psicológica e social, mas integrantes de um todo estético, ético e cognitivo da obra. Um dos equívocos destacados pelo autor em trabalhos histórico-literários consistia em extrair o material biográfico diretamente das obras e vice-versa, em uma relação aparentemente mecânica entre elementos prosaicos e a obra estética, o que revelaria, por exemplo, até mesmo certas coincidências entre fatos das vidas das personagens e do autor. Frente a tal equívoco, o pesquisador russo propõe que se considere o elemento essencial que se constitui pela forma de tratamento do acontecimento. Tal abordagem não descarta a comparação das biografias do autor e das personagens e suas respectivas visões de mundo, nega, contudo, a confusão entre autor-criador – elemento da obra – e autor-pessoa – elemento do acontecimento ético e social da vida e na relação do autor com a personagem. Responsável pelo todo da obra, encontra-se o excedente de visão do autor, que lhe permite ver e conhecer o que todas as personagens de seus lugares não conseguem. Dessa forma é que o autor guia a personagem e sua orientação ético-cognitiva no contexto da obra. Se essa se delineia enquanto unidade inacabada, aquele se fundamenta como núcleo de certo distanciamento em relação a ela, o que possibilita a excedência de visão. Acerca da relação autor-personagem, Bakhtin destaca casos típicos de desvio quando a personagem coincide com o autor na vida (autobiografia). Nesse caso, esse deve “colocar-se à margem de si”, ou seja, arregimentar-se de um excedente de visão que lhe possibilite oferecer acabamento ao personagem na obra. Em outros termos, deve se tornar um outro de si mesmo: o autor se avalia a partir do olhar alheio para retornar a si mesmo com nova percepção acerca de seu todo estético e axiológico. Bakhtin ainda destaca que, caso o autor perca esse distanciamento, é possível ocorrer três casos típicos da relação autor-personagem: 1) a personagem assume o domínio sobre o autor que não consegue contemplá-la inteiramente; 2) em um segundo caso, o autor “se apossa da personagem” podendo constituir-se em dois sentidos: não sendo autobiográfica, personificam a visão do autor ou autobiográfica, de modo a vivenciar o seu inacabamento como limitação; 3)e, em um terceiro caso, configura-se pela presença da personagem como autora de si, responsável ela sua heroificação ou satirização por aspectos físicos e imagem externa na relação com o plano de fundo do mundo. Bakhtin observa, dessa forma, a importância da autoria criadora na constituição do acabamento estético da obra, o que necessariamente envolve a relação dessa autoria com as personagens. Compreende-se que, nesse texto, já se encontram, em linhas gerais, diretrizes teóricas constitutivas, por exemplo, de “Problemas da Poética de Dostoiévski”, obra basilar da teoria do Círculo em que Bakhtin delinearia não apenas o conceito de polifonia, como também elementos fundamentais da Metalinguística, ciência que estuda as relações dialógicas.

BAKHTIN, Mikhail. “O autor e a personagem” IN: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003[1952-53]. p. 261-308. ________________. “O problema do conteúdo do material e da forma na criação literária.” IN: Questões de literatura e de estética. 6ª Ed.  São Paulo: Hucitec, 2010.